sexta-feira, 26 de abril de 2013

Café, aspirinas e um clichê

Ela mal havia tocado no café, quase todo o líquido que a garçonete serviu restava esfriando naquela xícara. Tal como os meus dedos estavam esfriando à medida que o tempo ia passando e ela não tomava o café e não olhava pra mim. Eu, pelo contrário, estava na minha terceira xícara fumegante que contrastava com o meu estado interior congelado na expectativa de não ouvir ela dizer o que eu sabia que ela iria dizer. Tinha uma esperança inútil que o desfecho da conversa fosse favorável às minhas emoções, ao meu amor estúpido que eu sentia por essa criatura que estava sentada na minha frente e não tomava aquele café.

Suspirou e ainda sem olhar pra mim, disse:

- A gente sabia, desde o início, que não daria certo.

Enfim, ela disse. 

Disse com uma expressão de dor como se as palavras fossem lâminas que tivessem cortado seus lábios e tomou um gole daquele café gelado.

Tentei me concentrar na experiência horrível que ela havia acabado de passar ao ingerir aquele café gelado pra não pensar no que ela havia acabado de me dizer e que eu já sabia que ela iria dizer mas não queria que ela dissesse. 'Meu deus, eu não sabia de nada, ela também não, estava mentindo pra mim e tomou esse café horrível só para experimentar algo tão cruel quanto mentir pra mim. Como a gente poderia saber? Olha que clichê-patético-sentimental: eu achava que o nosso amor era épico e não que iria acabar ali
no cotidiano de um café vagabundo. Mas olha quanta ignorância afetiva: eu achava que amar era suficiente.'

A essa altura era o meu café que já estava frio.

Pensei: 'Quantos casais mais já devem ter se desmanchado nessa mesma mesa desse mesmo café dessa mesma esquina? Desmanchado feito comprimidos de aspirinas dentro de uma xícara de chá quente.' E me concentrei na imagem da aspirina desmanchando em dezenas de centenas de milhares de partículas dentro de uma xícara de chá quente para não pensar no que ela havia acabado de me dizer. 'O que a gente pode dizer quando a gente quer muito segurar alguém que não quer ficar? Como dizer para um passarinho que se encontra dentro de uma gaiola aberta que a realidade no interior desta é bem melhor do que a realidade que o espera lá fora? O que eu poderia dizer? Lembro de Caio F. dizendo que quando a gente precisa que alguém fique, a gente constrói qualquer coisa, até um castelo. O máximo de castelo que eu poderia construir naquele momento seria com aspirinas que desmancham em xícaras de chá quente.'

Ela continuava a não olhar pra mim e eu não ousava levantar a cabeça, mas ela sabia que naquele instante que eu já estava com um pequeno mar se formando nos  meus olhos. Ela conhecia minha sensibilidade exacerbada.

'Por favor, fica.' - quis pedir. Queria falar algo tão bonito e convidativo que quando ela ouvisse desistisse dessa ideia idiota de levantar-se daquela mesa e me deixar naquele lugar sozinha com duas xícaras de café gelado e imagens de aspirinas na cabeça, mas só conseguia pensar: 'Fica, eu posso ficar mais bonita pra você, eu vou dar um jeito no cabelo, ir pra academia, aprender francês, estudar filosofia, literatura e arte, ser melhor na cama, mas fica. O que você acha de um castelo feito com aspirinas? E com massinha de modelar?  Ou com a minha pele, hein?'

No entanto, me calava. Meus dedos estavam tão frios quanto três xícaras de café atrás. Estendeu-me a mão sobre a mesa e os tocou, então percebi que nos seus olhos também já havia se formado um pequeno mar.

- Por quê? - lhe perguntei como se houvesse lhe perguntado acerca do mistério do universo.

Ela também não sabia. Nem da gente, nem do universo, nem de gaiolas abertas, nem de castelos de aspirinas e nem de quantos casais poderiam ter se desmanchado naquela mesma mesa.

Levantou e pensei: 'Pronto, ela vai me deixar aqui nessa mesa engordurada e indiferente que nem sabe da tragédia que está prestes a acontecer porque a última lembrança que eu terei dessa criatura linda vai ser das suas costas ao sair por aquela porta. Tão clichê.'

Ao invés disso, deu a volta na mesa e sentou-se ao meu lado e beijou uma parte do pequeno mar que já estava descendo pelo meu rosto, acomodou minha cabeça no seu ombro e ficou enrolando as pontas do meu cabelo no seu dedo.

E pensei: 'De todos os possíveis casais que devem ter se desmanchado naquela mesa, nenhum fez isso de forma mais bonita que a gente. Feito duas aspirinas numa xícara de chá quente. Lentamente..'

Qualquer coisa banal fica poética quando a gente está muito triste.


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